terça-feira, 8 de outubro de 2013

O primeiro morto a gente nunca esquece



Engraçado, sempre me perguntam quando foi que eu fiz a primeira foto de gente morta. Esses dias, depois de postar uma das minhas histórias, o amigo Mauricio Pavan sugeriu para que eu contasse essa. Então senta que lá vem mais uma história. Essa além de ser engraçada tem a ver com as tradições do povo nordestino. O ano era 1974, eu trabalhava no estúdio Eurydes, um dos mais conceituados da cidade. Foi lá que aprendi fotografar com os verdadeiros mestres da arte. Faço questão de citar três deles: "seo" Carvalho (que carinhosamente chamávamos de vô  - além de ser um grande laboratorista era um grande retocador de negativo e positivo. Explicando: para os mais novos a arte de retocar era equivalente ao photoshop de hoje. Já o "Seo" Gumercindo, era um excelente fotógrafo que sabia tudo e brincava com a  luz como ninguém. Por último, o  Liraucio Girardi (Lira). Ótimo fotógrafo que sabia tudo de laboratório. Aprendi fotografia com base nesse  tripé de gênios. Certo vez, ainda me lembro bem que era um sábado. Mais ou menos por volta das 10 horas,  meu patrão o Seo Osvaldo Segallio, sujeito gente boa e engraçado, também fotógrafo, que por muitos anos foi um dos profissionais de fotografia da Policia Cientifica (Antiga Policia Técnica), me chamou e perguntou se eu ficava impressionado ou se tinha medo de morto. Respondi que não. Então ele me mandou pegar a Rolley (Rolleyflex) e dois filmes e acompanhar dois senhores que estavam no estúdio. Nos fins de semana eu ajudava a iluminar em casamentos e o "Lira" sempre me deixava fazer fotos com um dos filmes que ele levava  para a igreja. Isso sempre acontecia durante o sermão dos padres. Nesse dia seria meu o primeiro trabalho como fotógrafo.  Eu iria fazer as minhas primeiras fotos sem a supervisão do "Lira". Como o "seo" Osvaldo era muito brincalhão achei que ele estava me sacaneando com relação aos mortos que ele se referia. Só os mais "experientes" é que vão lembrar disso. Existia um velório (acho que foi o primeiro de Campinas) que ficava no hospital Santa Casa, atrás da prefeitura. Do estúdio Eurydes, que ficava na esquina da  rua General Osório com Dr. Quirino, eu e os dois senhores fomos a pé até o velório sem trocar uma palavra. Também nem me importei. Estava mascando um chiclete Ping Pong e isso para mim naquela época era mais interessante que tudo. Assim que chegamos na Santa Casa caiu a minha ficha. Pensei: "caralho é pra fotografar morto mesmo" e já começou a tremedeira e a suadeira. Respirei fundo e pensei: se ele me passou o serviço é porque confia em mim. Acho que cheiro de velório é igual em todo lugar, então junte tudo isso: cheiro, suor e cagaço. A primeira coisa que fiz foi jogar o chiclete fora e lembrar dos fundamentos para a época: 250 5,6 ou 125 8,0. Isso não é matemática não meu amigo, era velocidade e diafragma. Na dúvida fiz com os dois. Na verdade, eu não sei se era uma tradição do povo nordestino fazer foto com o ente querido no caixão e todo mundo em volta. E era isso que eu estava prestes a eternizar. Juntei os familiares atrás do caixão e fiz as primeiras fotos. Só que daquele ângulo não estava legal e o motivo era o seguinte: o algodão que estava no nariz do morto ficava muito evidente. Como a sala era pequena e não tinha grande angular, tinha que ser na raça. Subi em uma cadeira, afastei um pouco as velas que estavam na frente das pessoas e disparei mais algumas fotos. E aquele algodão ainda estava em evidência. O meu nervosismo foi aumentando e achei melhor fotografar tudo com 250 5,6 para que as fotos não ficassem tremidas pois era visível minha tremedeira. Foi aí que tive uma PUTA idéia. Os vivos poderiam levantar um pouco o caixão, e como eu estava em cima da cadeira resolveria o problema do "tal" algodão no nariz do morto. "Então vamos lá gente, levantem mais um pouco". Precisava subir mais e os parentes do morto levantando o caixão. "Deu moço"?, alguém perguntou. Respondi que ainda não, precisa levantar mais um pouco. Mas já estava no limite. Caixão costuma ficar em cima de duas bases de ferro e como levantaram um pouco mais, o caixão deu uma "escorregadinha" e uma das flores que enfeitavam o caixão caiu no chão. A urna estava enfeitada com Palmas de cores branca e rosa. Quando vi a flor cair pensei: fodeu se caiu a flor o próximo a cair é o morto. Juro que disparei a última foto e falei, "legal gente já deu". Entre mortos e feridos com exceção do morto, salvaram-se todos. O caixão voltou ao lugar. Percebi que uma senhora muito humilde que até hoje eu não sei se era mãe ou a mulher do morto, ajeitou a flor novamente no caixão e todos os parentes começaram a rezar. Fiquei constrangido em sair e ajudei na oração e isso até contribuiu para que eu me recompor da suadeira, do nervosismo e principalmente do cagaço. Cheguei a pensar que teria que rezar mesmo, já pensou se o morto cai no chão. Me despedi das pessoas com certo alívio e fui embora. O que vou escrever agora parece brincadeira, mas é a mais pura verdade. Saí do velório feliz por ter feito o meu primeiro trabalho sozinho e ainda por cima era um morto. Ficava imaginando a cara dos meus amigos quando contasse isso a eles,  e os pontos que ganharia com as "minas" do Santa Odila, pois lá era minha praia. E foi dessa forma que fotografei o primeiro morto. Essa é mais uma das histórias que vivi.  A imagem que posto aqui é do hospital Santa Casa de Campinas, ambiente onde vivi esta história.

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